Quatro anos esta manhã
por Sérgio Dávila (Revista da Folha de ontem, 11/09/2005)
“Há quatro anos, às 9h da manhã, o telefone tocou no apartamento que nós alugávamos no East Village, um nome que o mercado imobiliário inventou para aumentar os aluguéis da ex-“vizinhança ruim” do Lower East Side, na verdade a esquina da rua 12 com a Terceira Avenida, em Nova York.
Era um apartamento de “um quarto e meio” e “um banheiro e meio”, segundo a terminologia toda peculiar dos corretores nova-iorquinos, querendo dizer que tinha um quarto normal e um mezanino sobre a sala (o tal “meio quarto”) e um banheiro completo e outro sem chuveiro (o tal “meio banheiro”).
No fundo da sala, uma porta “que não deveria ser aberta a não ser em emergência” mas abrimos no primeiro dia, que dava para um conjunto de quintais à “Janela Indiscreta”, com direito a esquilos e árvores. No forro, o solário comum de chão de piche e uma churrasqueira tradicional.
Por este “Eden-upon-Hudson River” pagávamos uma obscenidade, uma dor no coração a cada cheque assinado ao “landlord”, chamemos de Mr. Ali, grande apreciador das cachaças que eu trazia do Brasil e ótima fonte junto à enorme comunidade árabe de Atlantic Beach, no Brooklyn.
Era uma terça-feira, e os últimos dias tinham sido particularmente agitados. Pedro Malan, o então ministro da Fazenda de FHC, fizera a tradicional viagem de “acalmar os mercados” para Wall Street na semana anterior. Emendei a cobertura econômica com a “reunião” dos Jackson Five no Madison Square Garden.
Na segunda à noite, fui ao show-lançamento do novo CD da banda Jamiroquai, completado por um hambúrguer e uma Guiness bem tirada no bar de mais personalidade de Manhattan de então, o P.J. Clarke’s, hoje comprado por investidores, reformado e levemente “amauriciado”.
Aquela terça-feira prometia ser tranqüila. Até que tocou o telefone. “Ligue já na CNN!”, gritou a sempre assertiva e entusiasmada diretora desta Revista, então secretária-assistente de Redação da Folha. Liguei e vi a notícia de então: “um monomotor de turistas entrou por acidente” numa das torres do World Trade Center, no coração financeiro da cidade.
Em meia hora, estávamos eu e minha mulher, armados de bloquinhos e uma câmera fotográfica, a poucos blocos do acontecimento que marcou o início do século 21 de verdade. Éramos dos poucos que corriam contra a “manada”, que tentava fugir do desconhecido, entre elas a modelo Gisele Bündchen, que minha fotógrafa improvisada teve o sangue frio de descobrir no meio da multidão, parar e entrevistar.
Pouco antes das 12h, “disfarçado” de “paramédico” por conta de uma máscara cirúrgica que achei no chão e envolto por uma nuvem densa de mais de 4 m, alcancei uma das faces da Torre Sul, que acabara de ceder. O horror que vi ali só seria suplantado (ou complementado) pelo do Iraque, dois anos depois.
Hoje sei que eram dois lados da mesma moeda dourada, rodada como jogo de sorte pelos dedos do lugar-tenente do Império, naquela época e agora o despreparado George W. Bush.
Nos próximos meses, eu escreveria mais de 500 textos sobre o assunto. De certa maneira, acho que nunca mais escrevi nada que não tivesse a marca daquele dia, no Brasil, na cobertura presidencial norte-americana, na guerra, até nas críticas de cinema.
Na semana passada, dei uma palestra para interessados e bem articulados alunos de um colégio de elite de São Paulo. A maior parte da platéia era nova demais para perceber, então, a diferença entre o videogame e imagens dos aviões entrando nas torres que viram repetidas e repetidas naquele dia na televisão. Fui elogiado e chamado de “imperialista burguês”.
O Afeganistão foi invadido, o Iraque foi invadido, Bush foi reeleito, Osama bin Laden continua solto, Madri e Londres foram atacadas, a bandalheira venceu a esperança, o berço do jazz desapareceu como Atlântida. Quatro anos depois, o mundo está pior. E eu mesmo não ando me sentindo muito bem…”
Rogério
“ Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai- vos. ” (Filipenses 4:4)
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